Memorial- Análise por Capítulos (2024)

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Rui Matos

Este capítulo apresenta a história de Baltasar e Blimunda. Baltasar perdeu a mão esquerda na guerra e regressa a Lisboa com Blimunda. Ela possui a habilidade de ver o interior das pessoas. Ambos vão trabalhar na construção de uma máquina voadora para o Padre Bartolomeu Lourenço.

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  • 1. ResumoCapítulo IJá há dois anos que D. João V está casado com D. Maria e até agora ela ainda nãoengravidou. A rainha reza novenas e, duas vezes por semana, recebe o rei nos seusaposentos. Quando ambos se casaram, o rei dormia com a rainha todos os dias, masdevido ao cobertor de penas que ela trouxe da Áustria e porque com o passar do tempo,os odores de ambos faziam com que o cobertor ficasse com um cheiro insuportável, orei deixou de dormir com a rainha.El-rei está a montar em puzzle a Basílica de S. Pedro de Roma para se distrair e porquegosta. Mas a rainha está á espera do rei para que ele cumpra o seu dever conjugal. Epara os aposentos da rainha o rei se dirige, mas entretanto chegou ao castelo D. Nuno daCunha, bispo inquisidor, e traz consigo um franciscano velho. Afirma o bispo que o freiAntónio de S. José assegurou que se o rei se dignasse a construir um convento emMafra, teria descendência. Enquanto isso, a rainha conversa com a marquesa de Unhão,rezam jaculatórias e proferem nomes de santos.Após a saída do bispo e do frei, o rei anuncia-se e, consumado o ato, D. Maria tem que"guardar o choco", a conselho dos médicos e murmura orações, pedindo ao menos umfilho que seja. D. Maria sonha com o infante D. Francisco, seu cunhado e dorme empaz, adormecida, invisível sob a montanha de penas, enquanto os percevejos começam asair das fendas, dos refegos, e se deixam cair do alto dossel, assim tornando mais rápidaa viagem. D João também sonhará esta noite, nos seus aposentos. Sonhará com o filhoque poderá advir da promessa da construção do convento de Mafra.Capítulo IISe a conceção da rainha ocorresse, seria vista como mais um entre os vários milagrestradicionalmente relacionados à ordem de São Francisco. Diz-se, por exemplo, que umtal frei Miguel da Anunciação, mesmo depois de morto, conservara o seu corpo intactodurante dias, atraindo, desde então, uma grande quantidade de devotos para a sua igreja.Noutra ocasião, a imagem de Santo António, que vigiava uma igreja franciscana,locomovera-se até à janela, onde ladrões tentavam entrar, pregando-lhes assim umgrande susto. Este caíra ao chão, tendo sido socorrido por fiéis, onde acabou por serecuperar. Outro caso, é o do furto de três lâmpadas de prata do convento de S.Francisco de Xabregas no qual entraram gatunos pela claraboia e, passando junto àcapela de Santo António, nada ali roubaram. Entrando na igreja, os frades deram comele às escuras, e verificaram que não era o azeite que faltava, mas as lâmpadas quehaviam sido levadas; os religiosos ainda puderam ver as correntes de onde pendiam aslâmpadas se balançando e saíram em patrulhas pelas estradas, atrás dos ladrões. E então,desconfiados de que os ladrões pudessem estar ainda escondidos na igreja, deram avolta, percorreram-na e só então, viram que no altar de Santo António, rico em prata,nada havia sido mexido. O frade, inflamado pelo zelo, culpou Santo António por terdeixado ali passar alguém, sem que nada lhe tirasse, e ir roubar ao altar-mor: O fradedeixou que o Menino "como fiador", até que o santo se dignasse a devolver aslâmpadas. Dormiram os frades, alguns temerosos que o santo se desforrasse do insulto...Na manhã seguinte, apareceu na portaria do convento um estudante que, querendo falar
  • 2. ao prelado (bispo), revelou estarem as lâmpadas no Mosteiro da Cotovia, dos padres daCompanhia de Jesus. Desta forma, faz-nos desconfiar que o tal estudante, apesar dequerer ser padre, fora o autor do furto e que, arrependido, deixara lá as lâmpadas, pornão ter coragem de as devolver pessoalmente. Voltaram as lâmpadas a S. Francisco deXabregas, e o responsável não foi descoberto.De referir, que o narrador volta ao caso do frei António de S. José, e faz-nos de novodesconfiar de que o frei, através do confessor de D. Maria Ana, tinha sabido da gravidezda rainha muito antes do rei.Capítulo IIIPassado o "Entrudo", como de costume, durante a Quaresma as ruas encheram-se degente que fazia cada uma as suas penitências. Segundo a tradição, a Quaresma era aúnica época em que as mulheres podiam percorrer as igrejas sozinhas e assim gozar deuma rara liberdade que lhes permitia até mesmo encontrarem-se com os seus amantessecretos. Porém, D. Maria Ana não podia gozar dessas liberdades pois, além de serrainha, agora estava grávida. Assim, tendo ido para a cama cedo, consolou-se em sonharoutra vez com D. Francisco, seu cunhado. Passada a Quaresma, todas as mulheresretornaram para a reclusão das suas casas.Capítulo IVBaltasar regressa a Lisboa, vindo da guerra, onde perdeu a mão esquerda numa batalhacontra Espanha, para decidir a quem pertencia o trono espanhol. Ao voltar a Lisboa trazconsigo os ferros que mandara fazer para substituir a mão que perdera na guerra. Acaminho de Lisboa Baltasar mata um homem de dois que o tentaram assaltar. Não sabiase ficaria em Lisboa ou se seguiria para Mafra onde estavam os seus pais, enquanto nãose decide vagueia pelas ruas da capital, onde conhece João Elvas, que também forasoldado, com quem passa a noite junto de outros mendigos num telheiro abandonado.Antes de dormirem todos contaram histórias de assassinatos e mortes que ocorreram nacidade, as quais compararam com mortes que alguns presenciaram na guerra.Capítulo VD. Maria Ana está de luto pela morte do seu irmão José, imperador da Áustria. Apesarde o rei ter declarado luto, a cidade está alegre, pois vai haver um auto de fé. É domingoe os moradores gostam de ver as torturas impostas aos condenados. O rei não iráparticipar na festa mas jantará na inquisição juntamente com os irmãos, infantes e arainha. Mesa recheada de comida, o rei não bebe, dando o exemplo.Nas ruas o povo furioso grita impropérios aos condenados e as mulheres nas varandasguincham dizendo que a procissão é uma serpente enorme. Entre este mar de genteencontra-se Sebastiana Maria de Jesus, mãe de Blimunda, procurando sua filha.Sebastiana imaginava que Blimunda estaria também condenada a degredo. Acaba porver a filha entre as pessoas que acompanham o auto, mas sabe que ela não poderá falar-lhe, sob pena de condenação. Blimunda acompanha o padre Bartolomeu Lourenço.Perto dela está um homem, Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, a quem ela se dirige e cujonome procura saber. Voltando a sua casa, Blimunda leva consigo o padre e deixa a portaaberta para que o recém conhecido também possa entrar. Jantaram... Antes de sair o
  • 3. padre deitou a bênção em tudo o que cercava o casal. Blimunda convida Baltasar paraque fique morando na sua casa, pelo menos até que ele tivesse que voltar a Mafra.Deitaram-se, Blimunda era virgem e entrega-se a ele. Com o sangue escorrido eladesenhou uma cruz no peito de Baltasar. No dia seguinte, ao acordar, Blimunda, semabrir os olhos, come um pedaço de pão e promete a Baltasar que nunca o olharia "pordentro".Capítulo VIEste capítulo começa com Baltasar Sete-Sóis a realçar a importância do pão para osportugueses e o facto dos estrangeiros que vivem em Portugal estarem fartos de comerpão. Assim eles produziram e trouxeram dos seus países os seus alimentos e vendiam-nos muito mais caros sendo difícil aos portugueses comprarem-nos. Depois Baltasarconta a história caricata de uma frota francesa; quando ela chegou a Portugal, osportugueses pensavam que vinha invadir o nosso país, afinal tratava-se de umcarregamento de bacalhau.No decorrer do capítulo Baltasar fala com o padre Bartolomeu Lourenço, Bartolomeudiz sonhar que um dia conseguirá voar e disse a Baltasar que o Homem primeirotropeça, depois anda, depois corre e um dia voará. Baltasar dá a sua opiniãoargumentando que para o homem voar terá que nascer com asas. O padre Bartolomeualerta Baltasar para o facto de ser um pecado ele dormir com Blimunda sem seremcasados. Depois Baltasar e Bartolomeu vão para S. Sebastião da Pedreira para verem amáquina que Bartolomeu inventou para um dia poder voar e à qual chamou passarola.Quando chegaram, Bartolomeu mostrou o desenho da passarola a Baltasar explicando-lhe como é que tencionava fazê-Ia voar. Após a explicação, Bartolomeu pede-lhe para oajudar na construção da passarola. Inicialmente Baltasar mostra-se receoso em aceitar aproposta, mas depois de Bartolomeu dizer que o facto de Baltasar ser maneta não temimportância, então este aceita o desafio.Capítulo VIINo início deste capítulo a falta de dinheiro é o grande obstáculo que Baltasar tem deultrapassar para começar a construção da passarola. Então Baltasar começa a trabalharpara ganhar o dinheiro necessário para poderem realizar o seu sonho, fazer a passarolavoar.No decorrer deste capítulo o narrador relata os assaltos que os portugueses sofreramdurante as suas viagens marítimas. Fala também sobre a gravidez de D. Maria Ana queteve uma menina, embora D. João quisesse um rapaz; mas o mais importante é que amenina nasceu saudável. Na altura do nascimento a seca que durava há oito mesesacabou, vindo assim muita chuva. Mais à frente o narrador narra o batizado da princesa,a quem chamaram Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara e no fim deste capítuloanuncia a morte de Frei António de S. José.Capítulo VIIIBaltasar e Blimunda estão a dormir na sua cama. Entretanto Blimunda acorda, e estendea mão para o saquitel onde costuma guardar o pão, mas apenas acha o lugar; entãoprocura por baixo do travesseiro e no chão, no entanto Baltasar diz-lhe para não
  • 4. procurar mais, porque não irá encontrar o pão. Blimunda com os olhos fechados,tapando-os com as mãos, implora a Baltasar para que lhe de o pão, mas este só lhe daráo pão depois de Blimunda lhe contar que segredos esconde. Esta tenta sair da cama masBaltasar não deixa, e acaba por haver um conflito entre eles e ele acaba por lhe dar opão. Passados uns breves momentos após Blimunda ter comido o pão virou-se paraBaltasar e diz-lhe: "Eu posso ver as pessoas por dentro, mas só o faço quando estou emjejum e promete nunca ver Baltasar por dentro. Ele não acredita. Então ela diz aBaltasar que lhe irá provar, que no dia seguinte quando acordassem iriam os dois à rua eele iria atrás para que Blimunda não o pudesse ver, e Blimunda iria à frente de olhosfechados e que lhe diria o que veria por dentro das pessoas, o que estaria no interior daterra, por baixo da pele e até por baixo das roupas, mas tudo isto acabaria quando oquarto da lua mudasse. E assim foi... Entretanto nasceu o infante D. Pedro, segundofilho dos reis D. João e D. Maria Ana Josefa.Capítulo IXBaltasar e Blimunda mudam-se para a quinta do Duque de Aveiro, em S. Sebastião daPedreira, para trabalhar na construção da máquina de voar do Padre BartolomeuLourenço. Apesar de não ter a mão esquerda, Baltasar tem a ajuda de Blimunda, umamulher vidente.El-rei que ainda gosta de brinquedos protege o padre da Inquisição. Este decide partirpara a Holanda, terra de muitos sábios sobre alquimia e éter, elemento que faz com queos corpos se libertem do peso da terra.Nesta altura as freiras de Santa Mónica manifestam-se contra a ordem de D. João V deque elas só podem falar com familiares.O padre abençoou o soldado e a vidente, despediu-se e partiu, deixando a quinta e amáquina de voar ao cuidado deles. Antes de partir para Mafra, o par decide não ir aoauto de fé e vão assistir às touradas, que é um bom divertimento. As touradas é comoassar o touro em vida, tortura-se o touro enquanto o público aplaude a mísera morte.Cheira a carne queimada mas o povo nem nota pois está habituado ao churrasco do autode fé.Na madrugada seguinte Baltasar e Blimunda partem para Mafra com uma trouxa ealguma comida.Capítulo XBaltasar e Blimunda chegam a Mafra a casa dos pais de Baltasar, mas só encontram suamãe em casa; o pai foi trabalhar. Sua mãe fica chocada por ver seu filho e ver que tinhaperdido a mão. Blimunda fica entre portas a espera que seu marido chame para conhecera sua nova família. Ela entra e fica a falar um pouco com sua sogra.No fim do dia chega o seu pai João Francisco e conversam sobre o que tinha acontecidona guerra. Blimunda fala um pouco sobre a sua família e a uma dada altura diz que suamãe foi degredada porque a tinham denunciado ao Santo Oficio. O pai de Baltasar ficapreocupado, porque pensa que ela é judia ou cristã nova, mas Baltasar diz ao seu pai quesua sogra tinha sido degredada por ter visões e ouvir vozes, diz ainda que pretendem
  • 5. ficar em Mafra e que estão a pensar em comprar casa. Seu pai conta-lhe que vendeu asterras que tinha na vela, ao rei, porque queria construir um convento de frades.João e Sete-Sois foram à salgadeira e tiraram um bocado de toucinho, que dividiram emquatro tiras e colocaram uma em cada fatia de pão e distribuíram por todos. Ficam aolhar Blimunda para verem se ela come a sua fatia, seu pai já podia tirar sua dúvida seela era ou não judia, mas ela come-a e assim o sogro fica mais descansado. Baltasar diza seu pai que precisa de arranjar um emprego para si e para sua mulher, todos ficaramcom dúvidas se ele conseguiria arranjar trabalho devido à mão.No outro dia, conheceram a nova parente, Inês e seu marido que falaram sobre a mortedo filho do el-rei e do seu filho que está doente. Baltasar caminha sobre as terras da velae relembra os momentos que ali passou, encontra o seu cunhado e conversa sobre oconvento que ali se construirá, e sobre os frades que irão vir viver para ali. Ao chegar acasa encontra sua mãe a falar com sua mulher sobre a rainha que agora visita muitasigrejas e muitos conventos onde reza pelo seu marido que está muito doente. D. Mariafica em Lisboa a rezar enquanto seu marido se acaba de curar naqueles campos deAzeitão, onde os franciscanos da Arrábida estão a assistir. O infante D. Franciscosozinho em Lisboa tenta fazer a corte a sua cunhada deitando contas à morte do rei. D.Maria diz-lhe que seu marido ainda não morreu e que não pensa em se casar de novo.Capítulo XIO padre Bartolomeu regressou da Holanda, não sabemos se trouxe ou não os segredosque buscava. Foi à Quinta de S. Sebastião da Pedreira; três anos inteiros haviam sepassado e tudo estava abandonado, o material que trabalhara disperso pelo chão,"ninguém adivinharia o que ali andar perpetrando." O padre vê rastos de Baltasar, masnão vê os de Blimunda e julga que ela morrera.Depois, parte para Coimbra, não sem antes passar por Mafra, onde vai ver os homensque iniciam o trabalho do Convento. Procurou por Baltasar e Blimunda, junto do párocoque informa que os casara em Lisboa. Blimunda veio abrir a porta e reconheceu-o pelovulto, quando desmontava. Beijou-lhe a mão. Marta Maria estranhou que a sua norafosse abrir a porta a quem não batesse ainda.Mais tarde, chegam Baltasar e o pai e aquele, por convivência com Blimunda, ao ver amula adivinha tratar-se do padre. Marta Maria, que já desconfiava ter uma "nascida"(tumor) no ventre, lamenta nada ter a oferecer ao padre, nem comida, nem abrigo parapassar a noite. O padre Bartolomeu dorme na casa do pároco e, pela madrugada,chegam Blimunda e Baltasar. Ela sem comer. Bartolomeu ama-os, eles sabem; Baltasarpergunta se o éter é a alma e o padre diz que não, que é da vontade dos vivos que ele secompõe. Blimunda espantou-se e o padre pediu que ela o olhasse por dentro. Ela viuuma nuvem escura, à altura do estômago. Era da vontade, diferente da alma, o que fariavoar a passarola. Bartolomeu montou na mula, disse que ia a Coimbra e que, quandovoltasse a Lisboa, mandaria avisar os dois para que lá estivessem. Baltasar ofereceu opão a Blimunda, mas ela pediu, primeiro, para ver a vontade dos homens quetrabalhavam no convento.Capítulo XII
  • 6. O filho mais velho de Inês Antónia e Álvaro Diogo morreu há três meses de bexigas;Álvaro tem a promessa de conseguir emprego na construção do convento; Marta Mariasofre de dores terríveis no ventre. João Francisco está infeliz porque o filho partiránovamente para Lisboa, e o convento dará trabalho a muitos homens. Blimunda foi àmissa em jejum e viu que dentro da hóstia também havia a tal nuvem fechada, vontadedos homens...O padre Bartolomeu de Gusmão escreve de Coimbra e diz ter chegado bem, mas agoraviera uma nova carta para que seguissem para Lisboa "tão cedo pudessem". Partiram emdois meses, porque o rei vinha a Mafra inaugurar a obra do convento. Sete-Sóis eBlimunda conseguiram lugar na igreja. No dia seguinte formou-se a procissão, o reiapareceu. A pedra principal foi benzida; foi tanta a pompa que gastaram-se nissoduzentos miI cruzados. Partiram Baltasar e Blimunda para Lisboa. A mãe Marta Mariadespede-se do filho dizendo que não o tornará a ver. Blimunda e Sete-Sóis dormem naestrada: Por fim chegaram à quinta onde esperariam o padre voador. Mal chegaram,choveu.Capítulo XIIIOs arames e os ferros enferrujaram-se e os panos da passarola cobrem-se de mofo; ovime, ressequido, destrança-se. Baltasar experimenta os ferros, tudo perdido, é melhorcomeçar outra vez. Enquanto o padre não chega, constrói-se a forja, vão a um ferreiro eveem como se faz o fole.Quando Bartolomeu de Gusmão chegou e viu o fole pronto, peça por peça desenhada efeita por Sete-Sóis, ficou contente e disse; "Um dia voarão os filhos do homem."Encomendou a Blimunda duas mil vontades dos homens e mulheres que morreriam afim de que, junto com âmbar e imãs, pudessem fazer subir a nau que construíam. Opadre distribui tarefas, indica a Sete-Sóis onde comprar ferro, vime e peles para os foles,pede segredo absoluto de tudo o que estão a fazer. Trabalham na passarola quase umano inteiro, procissões passam em delírio pelas ruas, povo misturado ao clero, cleromisturado aos nobres.Capítulo XIVO padre Bartolomeu Lourenço voltou a Coimbra já doutor em cânones, e agora pode servisto na casa de uma viúva.D. João manda vir da Itália o maestro barroco Domenico Scarlatti, a fim de dar lições demúsica à sua filha, a infanta D. Maria Bárbara. Scarlatti e Bartolomeu tornam-seamigos, partilhando as mesmas ideias e sonhos. Confiante em Scarlatti, o padre leva-o aS. Sebastião da Pedreira e apresenta os amigos e a passarola a Scarlatti. Blimunda chegada horta trazendo "brincos de cereja", a fim de brincar com Baltasar. Quando os viu, omúsico pensou: Vénus e Vulcano... O padre diz a Scarlatti que ele e Baltasar têm ambos35 anos e que não poderiam ser pai e filho. Mas poderiam ser irmãos, portanto, desde ocomeço da história, o tempo que se passou pode ser contado, nove anos. Mostrada apassarola por dentro, retira-se Scarlatti, mas promete voltar e trazer o cravo, que tocaráenquanto Blimunda e Baltasar trabalham. O padre lá permaneceu, onde treinou o seusermão para que os dois ouvissem. Discutem sobre Deus uno, trino. Blimundaadormeceu com a cabeça apoiada no ombro de Baltasar. Um pouco mais tarde ele
  • 7. levou-a para dormir. O padre saiu para o pátio, e toda a noite ali permaneceu, tomadopor tentações.Capítulo XVScarlatti voltou muitas vezes à quinta e pedia que não parassem o trabalho; ali, em meioaos ruídos e grandes barulhos, confusão, tocava o cravo.Há um surto de varíola em Lisboa, oriundo de uma nau vinda do Brasil. O padre pede àBlimunda que vá à cidade e recolha as vontades das pessoas. É assim que ela, em jejum,durante um dia inteiro se põe a recolher tais vontades. Um mês depois, são mais de milvontades presas ao frasco em que Blimunda as recolhia. E quando a epidemia terminou,ela tinha aprisionado duas mil vontades. Foi então que caiu doente. Nada a curava daextrema magreza; mas um dia, Scarlatti pôs-se a tocar e ela abriu os olhos e chorou. Omaestro veio, então, todos os dias, quer fizesse chuva ou sol; e a saúde de Blimundavoltou depressa.Um dia, Baltasar e Blimunda vão a Lisboa e encontram Bartolomeu doente, magro epálido. Parecia ter medo de algo.Capítulo XVINeste capítulo, comenta-se fortemente a governação do reino, criticando a maneira de sefazer justiça, onde o poder e a riqueza se sobrepõem sempre àqueles que nada têm nempodem... Até mesmo o destino, se calhar, foi injusto ao deixar morrer afogado o InfanteD. Miguel, poupando a vida ao seu irmão o Infante D. Francisco.Entretanto, criada pelo Padre Bartolomeu Lourenço, a passarola, a máquina de voar,está pronta. Em S. Sebastião da Pedreira, Baltasar e Blimunda, têm de deixar a quintaque foi perdida por El-rei para o Duque de Aveiro. O Padre Bartolomeu Lourenço,aguarda a vinda de El-rei para provar a máquina e quer dividir a glória e a fama do seuinvento com Blimunda e Baltasar. Porém o Padre anda agitado e receoso de que oacusem de feiticeiro e judeu, embora conte com o apoio de El-rei.O tempo passa, El-rei não chega; já é outono e a máquina necessita de sol para se erguerdo chão! Certo dia, eis que o Padre Bartolomeu Lourenço chega pálido e assustadodizendo que tinha de fugir, pois o Santo Ofício já andava à sua procura para o prender!Apontou a passarola e disse que iriam fugir nela! Depois de preparada pedem ajuda aoAnjo Custódio para aquela "viagem"... e partiram pelos ares sacudidos pelos ventos atéonde o destino os quis levar. Passam por momentos de medo, euforia, deslumbramentoe felicidade, considerando-se loucos. Lá do alto avistam Lisboa, o Terreiro do Paço, asruas, etc... Nesta altura procuram o padre para o prender e percebem que este fugiu. Anoite chega, sem sol a máquina começa a perder altitude... Estão assustados. O PadreBartolomeu Lourenço, resignado, espera o fim mas Blimunda como que inspirada,consegue controlar a máquina com a ajuda de Baltasar e evitam o pior. Uma vez emterra firme, deixam-se escorregar para fora e consideram um milagre terem-se salvo semqualquer ferimento.Não sabem onde estão. O Padre acha que vão encontrá-los e que morrerão. Blimunda eBaltasar, confiantes, acreditam que se se salvaram daquele perigo, salvar-se-ão dos
  • 8. próximos, e estão prontos para fazer a máquina voar no dia seguinte. Cansados e depoisde comerem algo, adormecem, Blimunda e Baltasar. O Padre está doente, tenta pegarlume na passarola mas os dois não o permitem. Afasta-se para umas moitas e nuncamais é visto. Baltasar vai procurá-lo, mas em vão. Cobriram a máquina de ramos efolhas para impedi-la de voar. Na manhã seguinte, desceram pelo mesmo sítio onde oPadre desaparecera sem deixar rasto, mas nem sombra dele. E lá partiram os dois. Aofim de dois dias chegam a Mafra, onde havia uma Procissão na rua que dava graças aDeus por haver mandado voar sobre as obras da Basílica o seu Espírito Santo!...Capítulo XVIINuma altura em que se passam tantos prodígios, Blimunda e Sete-Sóis têm que guardarsegredo porque se assim não fosse algo lhes aconteceria. Na casa dos pais de Baltasar, opar estava infeliz pela perda da mãe, mas Inês Antónia contou-lhes maravilhada osbenefícios do Espírito Santo. No dia seguinte Baltasar saiu de casa com o cunhado àprocura de emprego na obra de construção do convento.A Mafra chegaram notícias que tinha ocorrido um pequeno terramoto em Lisboaderrubando beirais e chaminés. Passados mais de dois meses, Baltasar e Blimundaforam viver para Mafra. Baltasar fez uma jornada e foi ver que a máquina de voarestava no mesmo sítio, na mesma posição, descaída para um lado e apoiada na asadebaixo de uma cobertura de ramagens já secas. Dois meses mais tarde, Blimunda vemesperá-lo ao caminho e conta-lhe que Scarlatti está na casa do Visconde. Scarlatti tinhafeito um pedido ao rei para poder visitar as obras do convento e o Visconde hospedara-o, apesar de não gostar de música.Scarlatti disse a Baltasar que o padre Bartolomeu teria morrido em Toledo para ondetinha fugido e como não falavam de Baltasar nem Blimunda resolveu vir a Mafraverificar se estavam vivos. Nessa noite soube-se que quando a máquina caiu o padrehavia fugido e nunca mais voltara. No dia seguinte Scarlatti partiu para Lisboa.Capítulo XVIIID. João V estava sentado numa cadeira escrevendo os seus bens e riquezas no rol. El-reimeditou acerca do que iria fazer às tão grandes somas de dinheiro, chegando àconclusão que a alma seria a primeira atenção, mandando construir o convento deMafra, pagando com o ouro das suas minas e fazendas. Todos os materiais utilizados noconvento eram de qualidade. De Portugal a pedra, o tijolo e a lenha para queimar, oarquiteto alemão, italianos mestres dos carpinteiros e da Holanda os sinos e oscarrilhões. O convento levou 8 anos a ser construído.Blimunda, Inês Antónia, Álvaro Diogo e o filho esperavam Baltasar, para jantarem como velho João Francisco que mal mexe as suas pernas. Acabado o jantar Álvaro Diogodorme a sesta. Baltasar bebe desde que soube da morte do padre Bartolomeu Lourenço eda sua passarola, foi um choque muito grande. Baltasar e seus amigos conversam acercadas suas vidas e falam de como eram as suas vidas antes de trabalharem em Mafra.Baltasar tem 40 anos, sua mãe já morreu e seu pai mal pode andar. Esteve na guerra e aíperdeu a sua mão, voltando a Mafra mais tarde. Sete Sois comenta que nem sabe seperdeu a sua mão na guerra ou se foi o Sol que a queimou, porque afirma que subiu umaserra tão alta que quando estendeu a mão tocou no Sol e queimou-o. Seus colegas
  • 9. comentaram que era impossível visto que só tocaria no Sol 'Se voasse como os pássaros,ou então seria bruxo. Baltasar nega dizendo que não é bruxo e também diz que ninguémo ouviu dizer que voou.Capítulo IXXDurante muito tempo Baltasar puxou e empurrou carros de mão e um dia, com a ajudade João Pequeno, puxou uma junta de bois, fazendo companhia ao seu amigo corcunda.Houve notícia que era preciso ir a Pero Pinheiro buscar uma pedra muito grande que láestava. Construíram lá um carro para carregar a pedra, como se fosse uma nau da Índiacom calhas. Foram para lá 400 bois e mais de vinte carros. Ao amanhecer os homenspartiram para cumprir 3 léguas até onde estava a pedra. Diziam que nunca tinham vistouma coisa como aquelas. Escavaram junto à pedra de forma a levá-la inteira para Mafra.A pedra vinha puxada a braços e Baltasar viu, num átimo de segundo, sangue e viu queum dos homens se ferira. No primeiro dia não andaram mais de 500 passos. No segundodia foi pior porque o caminho era a descer e foi preciso meter calços nos carros. Umhomem chamado Francisco Marques morreu atropelado por um carro, a roda passou-lhesobre o ventre, quando chegou ao fundo do vale, o carro que transportava a pedradesandou atingindo 2 animais, a seguir tiveram que os matar. Gastaram 8 dias entrePero Pinheiro e Mafra, quando chegaram parecia que tinham vindo da guerra, vinhamsujos e esfarrapados. Todos se admiraram com o tamanho da pedra.Capítulo XXEra a sexta ou sétima vez que Baltasar se deslocava a Monte Junto para consertar amáquina que se ia destruindo com o tempo. Mesmo protegida por mato e silvado, aslâminas da máquina voadora ficavam enferrujadas. Baltasar aproveitava a viagem paracolher vimes, que serviam para consertar os rasgões que encontrava no entrançado damáquina.Chegou o dia em que Blimunda decidiu acompanhar Baltasar na viagem. Justificando-seque gostaria de conhecer o percurso para o caso de necessitar deslocar-se até ao localsozinha poder fazê-lo sem problemas. Puseram-se a caminho depois das despedidas,com o burro que Baltasar arranjara para os ajudar na longa viagem que tinham pelafrente. Foram passando pelas vilas que Blimunda ia decorando, até chegarem aodestino.Durante o dia tentaram consertar a máquina até ao pôr do sol. Passaram a noite napassarola e voltaram no dia seguinte a Mafra.Mesmo depois da longa viagem ainda não tinham passado pelo pior, pois foi à hora dojantar, quando todos se juntaram, que morreu o pai de Baltasar, João Francisco.Capítulo XXID. João V queria construir uma basílica de S. Pedro em Lisboa, mas o arquiteto deMafra, que foi chamado pelo rei, João Frederico Ludwig, aconselhou-o a não construir abasílica, porque demorava muito tempo a construir e D. João V poderia já não estar vivoquando acontecesse a inauguração desta. Então o rei decidiu aumentar o convento de
  • 10. Mafra de oitenta para trezentos frades, e assim foi, foram chamados o tesoureiro, omestre dos carpinteiros, o mestre dos alvenéus, o abegão-mor e o engenheiro das minas.Então começaram as obras, mas depois o rei decidiu que a inauguração do novoconvento seria no dia dos seus anos, que calhava num domingo, daí a dois anos; apósessa data, o seu próximo dia de anos, que calhasse num domingo só seria daí dez anos epoderia ser muito tarde. Como dois anos seria pouco tempo para a construção do novoconvento, D. João V mandou os seus homens irem buscar outros homens a todas aspartes do país; estes eram recrutados contra a sua vontade, como escravos, indo assimtrabalhar para as obras do convento, para este estar pronto a tempo. Alguns desteshomens chegaram até a morrer com fome e perdidos a tentar voltar para casa.Capítulo XXIIEste capítulo versa essencialmente sobre as famílias reais portuguesa e espanhola.Desde muito cedo foram organizados casamentos entre as duas como os que agora sevão realizar, o de Maria Vitória, espanhola, que casou com o português José e o deMaria Bárbara, portuguesa, com o espanhol Fernando.Maria Bárbara tem 17 anos, não é formosa nem bonita mas é boa rapariga. No decorrerdo capítulo apercebemo-nos que iremos assistir ao percurso de Maria Bárbara e dafamília real até Espanha, onde ela e vai casar. Durante a viagem, a comitiva real passapor várias cidades portuguesas e depara-se com alguns problemas, principalmente osmeteorológicos, visto a chuva tornar os caminhos muito complicados para passar.Também podemos referir a construção de várias propriedades reais para que sepudessem acolher durante a viagem.É de salientar que Maria Bárbara vai para Espanha sem nunca ter visitado o convento deMafra que estava a ser construído em sua honra (por causa do seu nascimento).Capítulo XXIIIDe Portugal todo chegam homens e são escolhidos um por um. A infanta Maria Bárbaracasa-se com Fernando de Espanha. Esta é a marca do tempo narrativo de Saramago, ouseja os factos históricos. O noivo é dois anos mais novo que a noiva, e ele nunca poderávir a ser rei, porque este é o sexto na linha sucessória. Domenico Scarlatti toca no seucravo para a multidão de ignorantes, por ocasião do casamento da Infanta Dona MariaBárbara, na fronteira com a Espanha.Aqui, neste capítulo, o narrador menciona a procissão que levará os santos para seremcolocados nos altares do convento de Mafra: S. Francisco, Santa Teresa, Santa Clara, S.Vicente, S. Sebastião e Santa Isabel. Seguem também para Mafra frei Manuel da Cruz eos seus noviços; trinta, e ali, quando chegam cansados, são recebidos em triunfo.Baltasar vai para casa, o narrador anuncia-nos que ele está muito debilitado. Depois jáceia, quando todos dormem, Baltasar pega em Blimunda e leva-a a ver as estátuas,juntos, veem a lua nascer enorme e vermelha. Ele anuncia-lhe que vai ao Monte Juntona manhã seguinte, ver como está a passarola. Ela pede-lhe para ter cuidado e eleresponde que ela fique sossegada, que o seu dia ainda não chegou. Olham os santosinertes, o que seria aquilo? Morte, santidade ou condenação? Quando amanheceu,
  • 11. Blimunda levantou-se e juntou comida para o farnel do marido que ia ao Monte eacompanhou-o até fora da vila: "Adeus Blimunda, Adeus Baltasar", e separaram-se. Aochegar ao lugar onde estava a passarola, Baltasar come as sardinhas que Blimunda lhetinha colocado no alforge: havia tanto trabalho a fazer...Capítulo XXIVBaltazar não voltou para casa, o que fez Blimunda não dormir aquela noite. Esperaraque ele voltasse ao cair do dia, haveria os festejos da sagração da basílica, mas ele nãovoltara. Em jejum, olhando as pessoas que passavam para a festa, estava sentada numavala e ali ficou, vendo o que os que passavam carregavam por dentro; recebendoinsultos, dizendo outros. Voltou para casa, ceou com os cunhados e o sobrinho. Nãoconseguiu dormir.Não verá o rei quando ele vier a Mafra, vai esperar Baltazar pelos caminhos,desesperadamente tentando encontrá-lo, chegou até ao Monte Junto e encontra o alforgemas nem sinal de Baltasar nem da passarola, chora sem saber se ele morreu ou vive.Encontra um frade que tenta violá-la e mata-o com o espigão de Baltazar. Parte embusca do seu amado. Voltou a Mafra pensando que se tinham desencontrado, mas elenão estava lá.À tardinha, chegaram Inês António e Álvaro Diogo e encontraram-na a dormir. Demanhã, ela esquece-se de comer o pão e vê-os por dentro.D. João V faz quarenta e um anos e é 22 de outubro de 1730. Inaugura-se o convento.Capítulo XXVDurante nove anos, Blimunda andou pelos caminhos sempre à procura de Baltazar quesabia estar. Perguntou por ele em todo o lado.Julgavam-na doida, mas ouvindo-lhe as demais sensatas palavras e ações, ficavamindecisos se aquilo que dizia era ou não falta de juízo completo. Passou a ser chamadade A Voadora, e sentava-se, então, às portas, ouvindo as queixas das mulheres quelamentavam, depois, que os seus homens não tivessem também desaparecido, para queelas pudessem, ao menos, devotar-lhes um amor tão grande como o de Blimunda aBaltazar. E os homens, quando ela partia, ficavam tristes inexplicavelmente tristes.Voltava aos lugares por onde passara, sempre perguntando. Seis vezes passara porLisboa, esta, a que vinha agora, era a sétima. Sem comer, o tempo era chegado para ela.No Rossio, finalmente encontrou Baltazar. Havia lá um auto de fé. Eram onze oscondenados à fogueira; entre eles, estava António José da Silva, o Judeu, comediógrafoautor das Guerras de Alecrim e Manjerona e Baltasar, ela olhou-o, recolheu a suavontade, porque ele lhe pertencia.MemorialAs Transgressões na obra
  • 12. Transgressão do código religioso• Sumptuosidade do convento (pp.365-6) vs a simplicidade e a humildade(essência dos valores cristãos);• Recrutamento à força;• Construção da passarola vs a proibição de ascender a um plano superior/divino(p. 198) - 4 bases de solidez do projeto: Bartolomeu, Baltasar, Blimunda eScarlatti;• A castidade vs as relações sexuais nos conventos (pp. 95,97);• As estátuas dos santos (p. 344) vs a santidade humana (p. 342);• Missa, espaço de vivência espiritual (p. 145) vs missa, espaço de namoros e deencontros clandestinos (pp. 43, 162, 236);• A benção de Deus vs a benção dos homens;• Funeral do Infante D. Pedro, espetáculo de pompa e circunstância vs funeral dosobrinho de Baltasar, manifestação isolada de dor.Transgressão do código sexual• Sexo ritual protocolar para procriação (pp. 11-13, 319-20) vs sexo, entregapermanente e mútua de corpos e almas (p. 77 e outras).Transgressão linguística• Inversão de expressões bíblicas;• Jogos de palavras "os santos no oratório... não há melhor";• Desconstrução e reconstrução das regras de pontuação;• Aforismos "Não está o homem livre... com a verdade";• Confluência de registos de língua:o Popular "Queres tu dizer na tua que a merda é dinheiro, Não, majestade,é o dinheiro que é merda";o Familiar "correram o reino de ponta a ponta e não os apanharam";o Cuidado "Tirando as expressões enfáticas esta mesma ordem já fora dadaantes (...)".Transgressão ficcional• A Música vence a Doença;• A história vence a História;• O espaço da ficção é o espaço da Utopia, da Liberdade Suprema;• O Sonho é a Transcendência Humana.EspaçoEvocação de dois espaços principais determinantes no desenrolar da ação: Mafra eLisboa.Mafra: passa da vila velha e do antigo castelo nas proximidades da Igreja de SantoAndré para a vila nova em cujas imediações se vai construir o convento. A vila novacria-se justamente por causa da construção do convento.
  • 13. Lisboa: descrevem-se vários espaços dos quais se destacam o Terreiro do Paço, oRossio e S. Sebastião da Pedreira.Portugal beneficiava da riqueza proveniente do ouro do Brasil. D. João V em decreto de26 de novembro de 1711 autorizou que se fundasse, na vila de Mafra, um conventodedicado a Santo António e pertencente à Província dos Capuchos Arrábidos.Ludwig, arquiteto alemão, estava em Lisboa, em 1700, contratado como decorador-ourives, pelos Jesuítas. Foi a ele que entregaram o projeto do Mosteiro, destinado aalbergar 300 frades. A traça do edifício terá sido executada por volta de 1714-1715 aopasso que a igreja, avançada ate ao zimbório, foi sagrada em 1730. Outras dependênciasforam construídas para além da igreja: portaria, refeitório, enfermaria, cozinha,claustros, biblioteca.Terreiro do Paço: local onde primeiramente trabalha Baltasar na sua chegada a Lisboa,descrição pormenorizada e sugestiva da procissão do Corpo de Deus, em junho. É umespaço fulgurante de vida, com grande importância no contexto da sociedade lisboeta daépoca.Rossio: surge no início da obra, relacionado com o auto de fé que aí se realiza. Areconstituição do auto de fé é fidedigna, a cerimónia tinha por base as sentençasproferidas pelo Tribunal do Santo Ofício e nela figuravam não só reconciliados, mastambém relaxados, aqueles que eram entregues à justiça secular para a execução da penade morte. O dia da publicação do auto era festivo, segundo se pode constatar das defesasefetuadas. A procissão propriamente dita saía na manhã de domingo da sede do SantoOfício e percorria a cidade de Lisboa antes de chegar ao local da leitura das sentenças,numa das praças centrais. À frente seguiam os frades de S. Domingos com o pendão daInquisição. Atrás destes os penitentes por ordem de gravidade das culpas, cada umladeado por dois guardas. Depois, os condenados à morte, acompanhados por frades,seguidos das estátuas dos que iam ser queimados em efígie. Finalmente os altosdignitários da Inquisição, precedendo o Inquisidor-Geral. A sorte dos réus vinhaestampada nos sambenitos (hábito em forma de saco, de baeta amarela e vermelha quese vestia aos penitentes dos autos de fé) para que a compacta multidão que seaglomerava soubesse o destino dos condenados.S. Sebastião da Pedreira: local mágico ao qual só acedem o padre, BartolomeuLourenço, o Voador, Baltasar e Blimunda. É lá que se encontra a máquina voadora queestá a ser construída em simultâneo com o Convento de Mafra. A passarola insere-se nanarrativa como um mito, do qual o homem depende para viver, mito proibido mas quese evidenciará e se deixará ver pelo voo espetacular que se realizará, mostrando que aohomem nada é impossível e que a vida é uma grande aventura. S. Sebastião da Pedreiraera, àquele tempo, um espaço rural, onde não faltavam fontes, terras de olival, burros,noras, e onde se situava a quinta abandonada. Ali irão as personagens, variadíssimasvezes e pelas razões mais diversas.PersonagensD. João V: proclamado rei a 1 de janeiro de 1707, casou, no ano seguinte, com aprincesa Maria Ana de Aústria e vive um dos mais longos reinados da nossa história.Surge na obra só pela sua promessa de erguer um convento se tivesse um filho varão do
  • 14. seu casamento. O casal real cumpre, no início da obra, com artificialismo, os rituais deacasalamento. O autor escreverá o memorial para resgatar o papel dos oprimidos que oconstruíram. Rei e rainha são representantes do poder, da ordem e da repressãoabsolutista.Baltasar e Blimunda: são o casal que, simbolicamente, guardará os segredos dosinfelizes, dos humilhados, dos condenados, enfim, dos oprimidos. Conhecem-se duranteum auto de fé, levado a cabo pela Inquisição, o de 26 de julho de 1711 e não maisdeixam de se amar. Vivem um amor sem regras, natural e instintivo, entregando-se ajogos eróticos. A plenitude do amor é sentida no momento em que se amam e aprocriação não é sonho que os atormente como sucede com os reis.Blimunda: com poderes que a tornavam conhecedora dos outros nos seus bens e nosseus males, recusando-se, no entanto, a olhar Baltasar por dentro. Vai ser ela quem, comBaltasar, guardará a passarola quando o padre Bartolomeu vai para Espanha onde,afinal, acabará por morrer. Ela e Baltasar sentir-se-ão obrigados a guardá-la como sua,quando, após uma aventura voadora, conseguira aterrar na serra do Barregudo, nãolonge de Monte Junto, perdido o rasto do padre que desaparecera como fumo. Quandovoltaram a Mafra, dois dias depois, todos achavam que tinha voado sobre as obras dabasílica o Espírito Santo e fizeram uma procissão de agradecimento. Começaram avoltar ao local onde a passarola dormia para cuidar dela, remendá-la, compô-la e limpá-la.Um dia Baltasar foi verificar os efeitos do tempo na passarola mas Blimunda não oacompanhou e ele não voltou. Procurou-o durante 9 anos, infeliz de saudade, na suasétima passagem por Lisboa encontrou-o entre os supliciados da Inquisição, a ardernuma das fogueiras, disse-lhe "Vem" e a vontade dele não subiu para as estrelas poispertencia à terra e a Blimunda.Povo: todos os anónimos que construíram a História são representados através daquelesa quem o autor dá nome: Alcino, Brás, Nicanor, etc.Padre Bartolomeu de Gusmão: tem por alcunha O Voador, gosto pelas viagens,estrangeirado, a ciência era, para ele, a preocupação verdadeiramente nobre. O reimostra-se muito empenhado no progresso do seu invento. A populaça troça dele,Baltasar e Blimunda serão ouvintes atentos das suas histórias e sermões. A amizadedestes dois seres, simples, enigmáticos, mas verdadeiros protagonistas do Memorial, étão valiosa para o padre como necessária à representatividade da obra como símbolo desolidariedade e beleza em dicotomia com egoísmo e poder.Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu Lourenço formam um trio que vai pôr emprática o sonho de voar. Assim, o trabalho físico e artesanal, de Baltasar, liga-se àcapacidade mágica de Blimunda e aos conhecimentos científicos do padre. Todospartilham do entusiasmo na construção da passarola, aos quais se junta um quartoelemento, o músico Domenico Scarlatti, que passa a tocar enquanto os outros trabalham.O saber artístico junta-se aos outros saberes e todos corporizam o sonho de voar.Scarlatti: veio como professor do irmão de D. João V, o infante D. António, passandodepois a ser professor da infanta D. Maria Bárbara. Exerceu as funções de mestre-de-capela e professor da casa real de 1720 a 1729, tendo escrito inúmeras peças musicais
  • 15. durante esse tempo. No contexto do romance, para além do seu contributo na construçãoda passarola é determinante na cura da doença de Blimunda; durante uma semana tocoucravo para ela, até ela ter forças para se levantar.Crítica da guerra: absurda, sacrifica homens em nome de um interesse que lhes écompletamente estranho e abandona-os à sua sorte quando doentes ou estropiados.NarradorSentencia: segue ou inventa provérbios.Dialoga: com o Narrador.Manipula: as personagens.Apaga-se: face às personagens.Ironiza / Assume-se /Compromete-se.Domina e Autolimita-se: face ao conhecimento da história.Profetiza.Descreve: paisagens, situações, factos acontecidos (e a acontecer).Ele é:• Antiépico;• Histórico: contrapõe-se ao discurso do poder que valoriza o empreendimentomegalómano do rei, um discurso que revela o absurdo das imposições reais, umdiscurso dessacralizador do poder régio;• Religioso: o narrador incorpora referências religiosas, inclusivamente o textobíblico. A originalidade ressalta das marcas transgressoras do sagrado quebalançam entre o sagrado e o profano como um jogo a explorar e a partir do qualse pretende tirar dividendos ideológicos;• Cultural: exploração da intertextualidade e da multiplicidade de discursosreferentes quer à História quer à ficção - referências a diversos outros autores,Camões e Pessoa, por exemplo; recorrência aos jogos de palavras e de conceitosidentificadores do estilo da época a que o texto se reporta - o estilo barroco.Amor, Sexo, Casamento e SonhoRelações amorosas
  • 16. A Utopia do AmorA Dimensão Simbólica das Personagens
  • 17. Em Memorial do Convento há dois grupos antagónicos de personagens: a classeopressora, representada pela aristocracia e alto clero, e os oprimidos, o povo. Noprimeiro grupo destaca-se a atuação do Rei, enquanto que no segundo, além de Baltasare Blimunda, se integram o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, perseguido pelaInquisição, pela modernidade do seu espírito científico, e Domenico Scarlatti que, pelaliberdade de espírito e pelo poder subversivo da sua música, é uma figura incómodapara o Poder. É ainda importante referir que, em Memorial do Convento, as personagenshistóricas convivem com as fictícias, conduzindo à fusão entre realidade e ficção.D. João VRei de Portugal de 1706 a 1750, desempenha o papel de monarca de setecentos que querdeixar como marca do seu reinado uma obra grandiosa e magnificente - o Convento deMafra. Este é construído sob o pretexto de que cumpre uma promessa feita ao clero,classe que "santifica" e justifica o seu poder.É símbolo do monarca absoluto, vaidoso, megalómano, egocêntrico, e mantém com arainha apenas uma relação de "cumprimento do dever" e, em alguns momentos,pretende ser um déspota esclarecido, à semelhança dos monarcas europeus da sua época(favorece, durante algum tempo, o projeto do padre Bartolomeu de Gusmão e contrataDomenico Scarlatti para ensinar música a sua filha, a infanta Maria Bárbara). Dado aosprazeres da carne e a destemperos vários (teve muitos bastardos e a sua amante favoritaera a Madre Pauta do Convento de Odivelas). Sacrificou todos os homens válidos e ariqueza do país na construção do convento.Maria Ana JosefaDe origem austríaca, a rainha, surge como uma pobre mulher cuja única missão é darherdeiros ao rei para glória do reino e alegria de todos. É símbolo do papel da mulher daépoca: submissa, simples procriadora, objeto da vontade masculina.Baltasar Sete-SóisBaltasar Mateus, de alcunha Sete-Sóis, deixa o exército depois de ter ficado maneta emcombate contra os espanhóis, conhece Blimunda em Lisboa, e com ela partilha a vida eos sonhos. De ex-soldado passa a açougueiro em Lisboa e, posteriormente, integra alegião de operários das obras do convento. A sua tarefa máxima vai ser a construção dapassarola, idealizada pelo padre Bartolomeu de Gusmão, passando a ser o garante dacontinuidade do projeto, quando o padre Bartolomeu desaparece em Espanha.Baltasar acaba por se constituir como a personagem principal do romance, sendo quase"divinizado" pela construção da passarola: "maneta é Deus, e fez o universo. (...) SeDeus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame quehão de voar. " (p. 69) - diz o padre Bartolomeu a propósito do seu companheiro desonhos. Após a morte do padre, Baltasar ocupa-se da passarola e, um dia, num descuido,desaparece com ela nos céus. Só é reencontrado, nove anos depois, em Lisboa, a serqueimado no último auto de fé realizado em Portugal.O simbolismo desta personagem é evidente, a começar pelo seu nome: sete é umnúmero mágico, aponta para uma totalidade (sete dias da criação do mundo, sete dias da
  • 18. semana, sete cores do arco-íris, sete pecados mortais, sete virtudes); o Sol é o símboloda vida, da força, do poder do conhecimento, daí que a morte de Baltasar no fogo daInquisição signifique, também, o regresso às trevas, a negação do progresso. Baltasartranscende, então, a imagem do povo oprimido e espezinhado, sendo o seu percursomarcado por uma aura de magia, presente na relação amorosa com Blimunda, naafinidade de "saberes" com o padre Bartolomeu e no trabalho de construção dapassarola.Baltasar é uma das personagens mais bem conseguidas de todo o romance porquedescrever a ambição de um rei, as intrigas duns frades e a loucura de um cientista érelativamente fácil, mas escolher uma personagem do povo, maneta e vagabunda, queaparentemente não tem muito para dizer e convertê-la no fio condutor da narrativa e noprotagonista duma das mais belas e sentidas histórias de amor, é algo que só conseguemautores como Cervantes, que de um criado como Sancho Pança criou um arquétipo e umdigno "antagonista" de Dom Quixote.Baltasar é um homem simples, elementar, fiel, terno e maneta, que confina a capacidadede surpresa com a resignação típica das pessoas humildes de coração e de condição.Aceita a vida que lhe foi dado viver e a mulher que o destino lhe ofereceu, semassombro nem protestos; acata as suas circunstâncias e não tem medo nem do trabalhonem da morte. Não é um herói nem um anti-herói, é simplesmente um homem.Blimunda de JesusBlimunda de Jesus é "batizada" de Sete-Luas pelo padre Bartolomeu de Gusmão ("Tu ésSete-Sóis porque vês às claras, (...) Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe,de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batizada estava, que o batismo foi de padre, nãoalcunha de qualquer um" - pág. 94).Conhece Baltasar quando assiste à partida de sua mãe, acusada de feitiçaria, para odegredo. Logo os dois se apaixonam, e este amor puro e verdadeiro foge às convenções,subvertendo a moral tradicional e entrando no domínio do maravilhoso - cf. primeiranoite de amor (pp. 56-57).Blimunda tem um dom: vê o interior das pessoas quando está em jejum, herdou da mãeum "outro saber" e integra-se no projeto da passarola, porque, para o engenho voar, erapreciso "prender" vontades, coisa que só Blimunda, com o seu poder mágico, era capazde fazer. Blimunda é, simultaneamente, uma personagem que releva o domínio domaravilhoso, pelo dom que tem de ver "o interior" das pessoas (poder que nunca exercesobre Baltasar: "Nunca te olharei por dentro" - p. 57), porque amar alguém é aceitá-losem reservas. Blimunda encerra uma dimensão trágica na vivência da morte de Baltasar.Simbolicamente, o nome da personagem acaba por funcionar como uma espécie dereverso do de Baltasar. Para além da presença do sete, Sol e Lua completam-se: são aluz e a sombra que compõem o dia - Baltasar e Blimunda são, pelo amor que os une, umsó. A relação entre os dois é também subversiva, porque não existe casamento oficial eporque os dois têm os mesmos direitos, facto inverosímil em pleno século XVIII.Como outras personagens femininas de Saramago, também Blimunda tem uma grandefirmeza interior, uma forma de oferecer-se em silêncio e de aceitar a vida e os seus
  • 19. desígnios sem orgulho nem submissão, com a naturalidade de quem sabe onde está epara quê.Glória Hervás Fernandez, in Uma leitura espanhola de Memorial do Convento de JoséSaramago, in revista Palavras, n.º 21, primavera de 2002.Padre Bartolomeu Lourenço de GusmãoO padre Bartolomeu, personagem real da História, forma com Baltasar e Blimunda onúcleo mágico e trágico do romance. Vive com uma obsessão, construir a máquina devoar, o que o leva a encetar uma investigação científica na Holanda. Como cientistaignora os fanatismos religiosos da época e questiona todos os principias dogmáticos daIgreja. O seu sonho de voar e as suas inabaláveis certezas científicas revelam orgulho,"ambição de elevar-se um dia no ar, onde até agora só subiram Cristo, a Virgem ealguns santos eleitos" e tornam-no persona non grata para a Inquisição que o acusa debruxaria, obrigando-o a fugir para Espanha e a deixar o seu sonho/projeto nas mãos deBaltasar.A sua obsessão de voar domina-o de tal forma, que ele não se inibe de integrar no seuprojeto um casal não abençoado pela Igreja e de aceitar e usufruir das capacidadesheréticas de Blimunda, que farão a passarola voar. A passarola, símbolo daconcretização do sonho de um visionário, funciona de uma forma antagónica ao longoda narrativa: é ela que une Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu, mas também é elaque vai acabar por separá-los.Domenico ScarlattiArtista estrangeiro contratado por D. João V para iniciar a infanta Maria Bárbara na artemusical. O poder curativo da sua música liberta Blimunda da sua estranha doença,permitindo-lhe cumprir a sua tarefa ("Durante uma semana (...) o músico foi tocar duas,três horas, até que Blimunda teve forças para levantar-se, sentava-se ao pé do Cravo,pálida ainda, rodeada de música como se mergulhasse num profundo mar, (...) Depois, asaúde voltou depressa" - pp. 191-2).Scarlatti é cúmplice silencioso do projeto da passarola ("Saiu o músico a visitar oconvento e viu Blimunda, disfarçou um, o outro disfarçou, que em Mafra não haveriamorador que não estranhasse, e (...) fizesse logo seus juízos muito duvidosos" p. 231).É, ainda, Scarlatti que dá a notícia a Baltasar e Blimunda da morte do padreBartolomeu. A música do cravo de Scarlatti simboliza o ultrapassar, por parte dohomem, de uma materialidade excessiva, e o atingir da plenitude da vida.Bartolomeu de Gusmão, esse, aliado em diálogo excecional com o músico Scarlatti, oúnico que pode de raiz compreender as suas congeminações aladas, representa apossibilidade de articulação entre a cultura e o humano, entre o saber e o sonho, entre oconhecimento e o desejo (...) São os caminhos da ficção os que mais justificadamenteconduzem ao encontro da verdade.Maria Alzira Seixo, in O Essencial sobre José Saramago, INCM.
  • 20. BaltasarBlimundaAlguns intertextos do Memorial do Convento
  • 21. A propósito da procissão do Corpo de Deus e da preocupação do narrador com ovestuário, faz-se notar que "só os lírios do campo não sabem fiar nem tecer e por issoestão nus", o que vem de encontro ao Salmo bíblico: "Olhai os lírios do campo, nãofiam nem tecem...". Outra referência bíblica surge ainda aquando da decisão do Rei deimprimir maior velocidade às obras do convento, marcando a data da sagração dabasílica coincidente com o seu aniversário. A ironia do narrador leva-o a comparar adecisão do Rei com outras proclamações históricas, como "Pai, nas tuas mãos entrego omeu espírito".É também ainda a ironia do narrador que o faz exclamar, perante, mais uma vez, asexigências do Rei quanto à data de sagração do convento, "vós me direis qual é maisexcelente, se ser do mundo rei, se desta gente", invertendo completamente (...) amensagem de Os Lusíadas, na Dedicatória, de onde, com ligeira adaptação, este passofoi retirado. E que, se em Os Lusíadas era a grandeza, a coragem e a determinação deum povo que orgulhava e engrandecia o seu rei, aqui é justamente a capacidade deobedecer sem limites e a subserviência total que elevam o rei a quem todas as vontades,por mais inconcebíveis que sejam, são imediata e inquestionavelmente satisfeitas.Referências soltas a episódios de Os Lusíadas também vão surgindo num ou noutromomento da narrativa, sobretudo quando se trata de comparar a epopeia da descobertado caminho marítimo para a índia com a epopeia da viagem na passarola, também ela dedescoberta, rumo à aventura e ao desconhecido. Assim, toda a descrição da viagem deLisboa a Mafra mantém estreitas semelhanças com uma viagem marítima,estabelecendo o narrador comparações várias como a que se segue, enumerandoepisódios da viagem que marcam as dificuldades por que tiveram de passar osnavegadores: "é como se finalmente tivessem abandonado o porto e as suas amarraspara ir descobrir os caminhos ocultos, por isso se lhes aperta o coração tanto, quem sabeque perigos os esperam, que adamastores, que fogos de santelmo, acaso se levantam domar, que ao longe se vê, trombas de água que vão sugar os ares e o tornam a darsalgado".Nova referência ao Adamastor surge já perto do local onde vão aterrar e com o qualestiveram prestes a chocar e a desfazerem-se: "Na frente deles ergue-se um vultoescuro, será o adamastor desta viagem, montes que se erguem redondos da terra, aindariscados de luz vermelha na cumeada". Mas uma outra referência ao Adamastor tambémjá tinha sido feita no momento em que grandes ventos destroem a Igreja de madeira quetinha sido especialmente construída para a cerimónia de sagração da primeira pedra doConvento de Mafra. O narrador afirma que a grande tempestade ocorrida "foi como osopro gigantesco de Adamastor, se Adamastor soprou, quando lhe dobravam o cabo dosseus e nossos trabalhos.Também a descrição da "caça" aos homens para trabalhar nas obras do convento deMafra segue de muito perto o episódio de Os Lusíadas das despedidas em Belém e dafala do Velho do Restelo. As mulheres, ao verem os homens partir sob o jugo dosquadrilheiros, vão clamando, qual em cabelo, "Ó doce e amado esposo e outraprotestando, Ó filho, a quem eu tinha só para refrigério e doce amparo desta cansada jávelhice minha". E, face a esta cena, faz-se ouvir a voz da oposição a esta epopeia queera a construção do convento: "Ó glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátriasem justiça", para sempre silenciada por uma "cacetada na cabeça" de um quadrilheiro,mostrando até que ponto a História é circular e os seus episódios se repetem.
  • 22. ANA MARGARIDA RAMOS, Memorial do Convento, da leitura à análise (texto comsupressões), Edições Asa.Um estilo híbrido: a convergência do PatrimónioCulturalRegisto de línguaPopular: "de boca à banda" (p. 27)Familiar: "Meu querido filho, como foi isso, quem te fez Isto..." (p. 106)Cuidado: "não havendo portanto mediano termo entre a papada pletórica e o pescoçoengelhado, entre o nariz rubicundo e o outro héctico" (p. 27).Interação com a literatura portuguesaQuadras populares: "Aqui me traz minha pena com bastante sobressalto, porque quervoar mais alto, a mais queda se condena" (p. 104).Contos tradicionais: "Era uma vez uma rainha que vivia com o seu real marido empalácio..." (p. 260).Luís de Camões, Os Lusíadas: "O homem, bicho da terra" (p. 65).Padre António Vieira, Sermão de Santo António aos Peixes: "Estão parados diante doúltimo pano da história de Tobias, aquele onde o amargo fel do peixe restitui a vista aocego, A amargura é o olhar dos videntes, senhor Domenico Scarlatti,..." (p. 173).Fernando Pessoa, Mensagem: "Em seu trono entre o brilho das estrelas, com seumanto de noite. solidão, tem aos seus pés o mar novo e as mortas eras, o únicoimperador que tem, deveras, o globo mundo em sua mão, este tal foi o infante D.Henrique, consoante o louvará o poeta por ora ainda não nascido... (p. 233).Estilo barroco: "Parece apenas um gracioso jogo de palavras, um brincar com ossentidos que elas têm, como nesta época se usa, sem que extrema mente importe oentendimento ou propositadamente o escurecendo." (p. 172).Introdução do fantástico"Entre S. Sebastião da Pedreira e a Ribeira entrou Blimunda em trinta e duas casas,colheu vinte e quatro nuvens fechadas, em seis doente já as não havia, talvez astivessem perdido há muito tempo, e as restantes duas estavam tão agarradas ao corpoque, provavelmente, só a morte as seria capaz de arrancar de lá. Em cinco outras casasque visitou, já não havia vontade nem alma, apenas o corpo morto, algumas lágrimas oumuito alarido." (p. 186).A música como metáfora da obra literária
  • 23. "Se a música pode ser tão excelente mestra de argumentação, quero já ser músico e nãopregador. Fico obrigado pelo cumprimento, mas quisera eu que a minha música fosseum dia capaz de expor, contrapor e concluir como fazem sermão e discurso" (p. 168).Do sonho à concretizaçãoO paralelismo simbólico dos episódios iniciais e finaisAuto de fé de SebastianaMaria de Jesus, mãe deBlimundaAs últimas páginas...Auto de fé de Baltasar Sete-SóisPrimeiro encontro entreBlimunda e Baltasar- Blimunda "repetia umitinerário de há vinte e oitoanos".Último encontro deBlimunda e Baltasar- "Que nome é o seu, e o - "Naquele extremo arde um
  • 24. homem disse, naturalmente,assim reconhecendo odireito de esta mulher lhefazer perguntas".- O rio como imagem daprecariedade da vida.- Blimunda está em Lisboapela sétima vez:encerramento de um ciclo devida.homem a quem falta a mãoesquerda".Espaço - Rossio Espaço - Rossio- "O Rossio está cheio depovo".- "Meteu-se pela Rua Novados Ferros, virou para adireita na igreja de NossaSenhora de Oliveira, emdireção ao Rossio"Ambiente soturno: Ambiente soturno:- "sobre o Rossio caem asgrandes sombras doconvento do Carmo;- "e as pessoas voltarão àssuas casas, refeitas na fé,levando agarrada à sola dossapatos alguma fuligem,pegajosa poeiras de carnesnegras, sangue acaso aindaviscoso se nas brasas não seevaporou".- "caminhava no meio defantasmas, de neblinas queeram gente";- "Entre os mil cheiros fétidosda cidade, a aragem noturnatrouxe-lhe o da carnequeimada".A multidão reúne-se A multidão reúne-se- "O Rossio está cheio depovo".- "havia multidão em S.Domingos"As condenações daInquisição:As condenações daInquisição:- condenação da mãe deBlimunda (ao degredo).- condenação de António Joséda Silva, "autor de comédiasde bonifrates";- condenação de BaltasarSete-Sóis.Ritual de morteBlimunda comunicaenigmaticamente com amãeBlimunda que, no primeiroencontro com Baltasar,prometera que nunca overia por dentro, usa osseus dons nos momentosfinais da vida de Baltasar evê uma nuvem fechada queestá no centro do seu corpo- RECOLHE A SUAVONTADE.Blimunda comunicaenigmaticamente comBaltasar- "não fales, Blimunda, olhasó com esses olhos que tudosão capazes de ver;- "adeus Blimunda que nãote verei mais".- "Então Blimunda disse,Vem. Desprendeu-se avontade de Baltasar Sete-Sóis".Lisboa é o último (grande) espaço a ganhar importância e a fechar o círculo iniciado nocapítulo V, verdadeiro incipit do romance (funcionando os primeiros capítulos comoamostras das peças de encaixe do romance como construção). É num dia de auto de féque Blimunda (re)encontra Baltasar, agora no lugar de condenado, a arder na fogueira, e
  • 25. acolhe a sua vontade comungada com ela. Esta vontade acolhida em si transforma omomento em espaço de encontro e de partilha.In Interações, 12.º anoElementos simbólicosSetePara a cultura cristã, o algarismo 7 corresponde a:• Sete céus, sete sóis, sete esferas da antiga astrologia hermética: Sol, Lua,Mercúrio, Marte, Vénus, Júpiter e Saturno;• Sete virtudes cristãs (as teologais: fé, esperança e caridade; as cardeais: força,temperança, justiça e prudência);• Sete pecados capitais: orgulho, preguiça, inveja, cólera, luxúria, gula e avareza;• Sete sacramentos batismo, eucaristia, ordem, confirmação, casamento,penitência e extrema-unção;• Sete dias da criação do mundo narrados no Génesis;• Sete tabernáculos e sete trombetas de Jericó;• No Apocalipse: sete candelabros; sete estrelas; sete selos; sete cornos; setepragas; sete raios.Pode ainda corresponder a:• Sete cores do arco-íris;• Sete notas da escala musical.SolO Sol identifica-se com fonte de vida, com a própria vida - o que faz corresponder Sete-Sóis a Sete Vidas, que, por sua vez, significaria que Baltasar encarna simbolicamente avida de todos os homens do povo, sempre labutando e sempre perdendo o fruto do seutrabalho, independentemente de épocas históricas e de regiões geográficas.O Sol percorre um ciclo celeste diurno de Oriente para Ocidente - assim Baltasarpercorre, no interior da Passarola, um ciclo entre Lisboa e Montejunto; e tal como o Sol,para nascer, segundo a antiga mitologia, tem que vencer todos os dias todos osguardiães da noite/morte, Assim Baltasar terá que vencer os guardiães da "noitehistórica": a Inquisição, a credulidade popular, as forças espirituais retrógradas daEscolástica. E, assim como o Sol atravessa o céu, mas nele não se detém nem oconquista definitivamente para si, Baltasar atravessa o céu, rompe os céus, rasga aimagem pura de um céu morada de Deus. Neste aspeto, Baltasar, sob as ordenscientíficas do padre Bartolomeu de Gusmão, assume o estatuto de herói mítico que ousadesafiar a estabilidade aparentemente eterna da ideologia cristã. E, para que osimbolismo clássico do herói maravilhoso e trágico que ousa desafiar os deuses sejacumprido na totalidade, Baltasar morre pelo fogo, como herético, o padre Bartolomeude Gusmão morre louco, em Toledo, e Blimunda vagueia pelo mundo sem destino.
  • 26. Baltasar, Blimunda e o padre Bartotomeu de Gusmão repetem o desejo de Faetonte,filho mortal de Apoio, que, querendo imitar o pai, conseguiu deste a promessa de odeixar guiar o carro do Sol por um só dia. Porém, Faetonte não conseguiu manobrar oscavalos e sustentar o carro do Sol na abóbada celeste e o carro despenhou-se sobre aTerra, incendiando-a e matando o jovem ousado. Do mesmo modo, o padre Bartolomeude Gusmão e Baltasar morrerão devido ao seu desejo de voar e Blimunda tornar-se-á emmulher errante.LuaSe o nome de Sete-Sóis torna esta personagem num quase herói mítico, o nome deBlimunda de Jesus, Sete-Luas, faz de igual modo repercutir ecos mítico-ancestrais.Antes de mais, o nome próprio, Blimunda, deriva-nos de imediato para as narrativasbaseadas na matéria da Bretanha e para os ciclos celtas do rei Artur e dos Cavaleiros daTávola Redonda. Porém, o apelido Jesus integra desde logo estas possíveis derivaçõessemânticas no quadro do pensamento cristão.Blimunda não é de origem Sete-Luas; é o padre Bartolomeu de Gusmão que a crismaassim por ela ser companheira de Sete -Sóis: "... o padre virou-se para ela, sorriu, olhouum e olhou outro, e declarou: Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luasporque vês às escuras, e, assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, deJesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batizada estava, que o batismo foi de padre, nãoalcunha de qualquer um." (p. 94).No romance, Sete-Luas só se compreende por direta relação com Sete-Sóis e, de facto, aLua, porque não tem luz própria, é o princípio passivo do Sol. Porém, na intrigaromanesca de Memorial do Convento, o narrador histórico revoluciona este princípiosimbólico da passividade feminina e atribui a Blimunda capacidades intuitivas eecovisionárias, dependentes das fases da Lua, que a tornam, como elemento ativo, tãoimportante quanto Baltasar.Blimunda não se compreende sem Baltasar, mas este também não tem existênciaromanesca sem Blimunda, exatamente como o par antitético mas intimamentecomplementar de dia-noite, claro-escuro, Sol-Lua; porém, em Memorial do Conventoexiste uma substancial diferença: enquanto mitológica e religiosamente a nossacivilização confere um peso ontológico superior ao primeiro elemento dos paresantitéticos (o que se explica naturalmente por os olhos humanos terem sido feitos parareceber a luz e não a escuridão), neste romance, Baltasar e Blimunda sofrem de igualnível de protagonismo, nenhum deles sendo superior ao outro. Esta característicasubversiva do estatuto social feminino no século XVIII, estatuto então perfeitamentepassivo e submisso face ao poder masculino, é subsidiária do modo de vida a dois docasal, sem casamento oficial e com igualdade de mando e obediência entre ambos. Masa Lua, devido às suas fases, que aliás condicionam o poder de Blimunda, é tambémsímbolo do ritmo biológico da Terra, é medida do tempo, frutificadora da vida,guardadora da morte, dispensadora de geração. E é deste modo que Blimunda, devidoaos seus poderes, é aquela que acolhe as vontades humanas dos moribundos, as juntanas duas esferas para com elas e com estas gerar energia vital ("O ar que Deus respira")que, em conjunto com âmbar e o íman, movem a Passarola. A junção das vontadeshumanas, teorizadas pela nova ciência, que produzem mais força, mais vontade, tãoimensa que faz os Homens subirem aos céus, significa aqui, simbolicamente, a
  • 27. primavera mítica que arranca a Humanidade do dogma da religião, do terrorinquisitorial e da teologia supersticiosa, três símbolos que designam uma só realidade: amorte humana, o pensamento falso e passivo, a vontade resignada que enquadrava oPortugal da época.Blimunda é a mulher liberta do futuro, que trabalha ao lado do marido e em ele tudovive e decide, é a nova mulher, é a não-mulher coquete-objeto (de notar que nunca édescrito o corpo de Blimunda, a não ser uma ligeira referência à sua altura e à suamagreza (p. 56), é aquela em que, à imitação de Julieta, de Inês, de Isolda, de Heloísa,de Mariana Alcoforado, o amor vence, e vence ao ponto de durante nove anos nãodesistir de procurar o seu amado até que, encontrando-o, permite-se ficar deste"grávida" espiritualmente, comungando em si a vontade de Baltasar.A mãe da pedraUma outra situação-acontecimento de cariz mítico em Memorial do Convento constitui-se com a gesta heroica, epopeica, do transporte da pedra gigante de mármore, a mãe dapedra, de Pero Pinheiro para Mafra. Desde o início, a narração anormaliza as situaçõesdescritivas: o tamanho gigantesco da pedra, o carro especialmente construído para o seutransporte (uma "nau da Índia"), as duzentas juntas de bois e os seiscentos homensnecessários para o puxarem, os difíceis obstáculos do caminho, à semelhança dasnarrativas de heróis clássicos, em que se anunciam os "trabalhos" fabulosos que terão deser contornados e o esforço imperioso, mais do que humano, que terá de ser despendido.In Interações, 12.º ano
Memorial- Análise por Capítulos (2024)

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Name: Merrill Bechtelar CPA

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